quarta-feira, 2 de julho de 2014

UMA VIDA A FAZER RETRATOS DA VIDA (III)

(Continuação III)



             O José Esteves vivia segundo os princípios que a si próprio impunha. Era dotado de uma personalidade fortemente distinta e pouco comum, que o distanciava da dependência fosse de quem fosse. Recusava de modo quase ostensivo a caridade de um favor que não pedia (nunca pedia) nem beneficiou, por sua vontade, do direito à minguada pensão da previdência social que lhe era devida, a qual apenas lhe veio a ser atribuída escassos dois anos antes da sua morte por ação da direção da Obra Social de Lanheses, que a requereu sem que para colher o seu assentimento não tivesse sido necessário usar de habilidosa persuasão para colher a sua assinatura e formalizar o pedido, vindo depois a encarregar-se de a gerir à medida das necessidades do beneficiário porque ele recusava-se a recebê-la diretamente da Caixa Nacional de Pensões.

Certo nas contas, parco nos gastos não por sovinice ou avaro apego ao vil metal, bom vizinho e ser pacífico, o José Esteves era afável e alimentava num tom aboborado conversa com alguma substância quando instado e se sentia à vontade perante o interlocutor, em especial com os vizinhos mais próximos ou pessoa que bem conhecia, como acontecia comigo. Era reservado e precavido, sempre de pé atrás quanto aos direitos e às obrigações impostas pelo Estado. Seguindo o comportamento do pai, nunca se envolveu em iniciativas de cariz associativo ou cívico. Foi inteiramente alheio à política. Completou na escola primária de Lanheses o grau básico do ensino escolar.
               Não franqueava a ninguém a entrada na privacidade do seu espaço particular. Quem tencionasse obsequiá-lo com alimentos teria que os deixar à porta, pendurados. Tinha em alto valor os seus parcos bens (a telha canelada descascada e porosa do telhado da casinha onde morava era uma relíquia rara, para ele), e achava poder cozinhar tão bem quanto a melhor dona de casa, uns greiros de arroz por certo, confirma uma vizinha, a Amália. Nunca quis água canalizada da rede pública em casa, abastecia-se em baldes e garrafas nas torneiras da fonte do Largo do Outeiro para as necessidades diárias, por achar que era um “roubo” a que o sujeitavam pagar o consumo e, a escassa eletricidade que gastava, estaria a ser produzida por um sistema por ele inventado que consistiria num ligação de fios com moedas de cobre a servirem de polos a uma pequena bateria, posto em movimento com os pedais de uma das suas várias bicicletas. É crível que assim pudesse acontecer, o Zé era um “engenhocas” contumaz. A conclusão é extraída perante o cenário encontrado no momento do acesso forçado à residência, depois de dois dias em que a vizinhança se deu conta de não ver fumo sair pela chaminé a pressagiar ausência de vida, que se confirmou.

Corpo estendido no chão, frio e hirto. E silêncio, sobras e vazio. 


            As bicicletas são parte relevante da sua identidade e objeto inseparável do seu percurso de vida.

            Possuía-as em vários tamanhos, clássicas na sua estrutura, a preferida apetrechada com um selim longilíneo de mola cromada, com aparência de ser tão antiga quanto ele. Já no ocaso da sua existência era visto a pedalar numa bicicleta com rodas de tamanho reduzido e guiador de braços levantados como a mota de um motard extravagante, o que lhe facilitaria o equilíbrio e apoiar os pés no chão ao mesmo tempo, em situações que paragens inesperadas recomendam. Outras vezes, mantinha-se, por momentos, parado com ela encostada ao corpo alquebrado, supercilioso e mirrado de carnes na face e no corpo, olhando por baixo do boné de pala curta ou gorro de abas a cobrir as orelhas, frágil como um ramo seco pronto para se tornar cinza, não se distinguindo muito bem se era ele que a segurava ou a bicicleta que piedosamente o amparava.




             O espólio dos seus utensílios de trabalho mais significativos ficaram à guarda da Junta de Freguesia até que judicialmente seja decidido a quem, e onde, deverão ser entregues.

             Morreu o cidadão José Esteves Fernandes, celibatário, sem descendência direta conhecida ou colateral próxima, mas o ZÉ RETRATISTA, quiçá o mais antigo fotógrafo a la minuta do Alto-Minho, perdurará para além da memória de muitas gerações futuras através da História plasmada nas inumeráveis fotografias que criou das gentes, lugares e costumes da época que viveu. Foi um Homem que assumiu a sua humildade sem amargura ou rancor e de alma limpa, que viveu segundo os seus próprios conceitos e princípios, livre, respeitando o seu semelhante mesmo que nem sempre as suas qualidades tivessem sido valorizadas quanto o mereciam.

                                          (Vídeo)
                 A comprar pão pouco tempo antes da sua morte

 Fotos e vídeo: doLethes

Lanheses, Abril/2014

Remígio Costa.


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