segunda-feira, 24 de maio de 2010

OS VELHOS.


A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa anunciou que vai pagar mais de 622 euros (onde estão incluídos 70 por cento das suas reforma) a famílias que “adoptem” um velho institucionalizado. Desculpem usar a palavra velho, mas idoso é coisa impessoal de burocrata. Um velho é um velho e a vergonha da velhice é uma das coisas que mais idiotas dos nossos tempos. Que tem razões fundas, mas a isso já lá vou.
A ideia da Santa Casa até pode ser generosa e interessante. Imagino que até seja melhor
Mas os velhos sabem da vida coisas extraordinárias. Transportam as nossas memórias. Ou seja, os velhos são tão bons e tão maus como nós todos, mas mais frágeis, com mais vícios e com mais experiência. Gostamos da companhia dos velhos quando não somos deste tempo, que despreza a memória e a experiência; ou quando aquele velho de que gostamos é um pouco de nós. Porque sendo nosso pai, nossa mãe, nosso avô, nossa avó, nosso mestre, nosso qualquer coisa, encontramos nele alguma coisa daquilo que somos.
Uma criança adopta-se porque ela é uma possibilidade de futuro que nos inclui: será nossa filha porque com ela construiremos esse parentesco. Isso não é possível com um velho. Porque o que alimenta a relação com o filho adoptado é o presente e o futuro. Com um velho é o presente e o passado. E, se adoptarmos um velho, o passado em comum não estará lá. E isso faz toda a diferença. Um velho não é uma criança grande. É um adulto e um adulto não se adopta. 622 euros por mês garantem a possibilidade de alimentar um velho. Mas não garantem mais nada. E confesso que me assusta esta ideia de alugar o afecto.
Mas o que me interessa é tentar perceber como chegámos até aqui. Como é possível que os nossos velhos, os nossos pais e as nossas mães, os nossos avôs e as nossas avós, sejam despejados em lares e agora até possam ter de ser adoptados como se a velhice fosse uma infância sem passado? O abandono dos velhos resulta de coisas boas e de coisas más.
A longevidade aumentou e as famílias, que antes ficavam com os seus velhos durante um período curto das suas vidas, não lhes podem dar a mesma atenção quando o seu tempo de vida, frágil e dependente, é muito maior.
A entrada das mulheres no mercado de trabalho mudou a natureza das famílias. As instituições – as creches, as escolas e os lares – ocupam-se das pessoas que antes estavam a cargo das mães e das filhas.
A produtividade é tudo o que conta. A sociedade valoriza os que ainda não produzem mas estão a ser preparados para o fazer, mas não aqueles de quem já nada se espera.
O tempo acelerou e é a capacidade de aprender depressa que torna as pessoas valiosas. A memória e a experiência parecem não valer um chavo.
Acontece que os velhos já são, nas sociedade mais ricas, uma parte muito significativa da população. E se queremos viver com alguma dignidade – nós próprios seremos velhos um dia – temos de mudar algumas coisas nas nossas vidas.
Dando mais tempo a quem trabalha para tratar dos seus. É por isso que não me deixo de espantar com aqueles que dizendo defender “os valores da família” são ao mesmo tempo defensores de regimes laborais agressivos e precários, onde não sobra tempo para mais nada que não seja trabalhar. E garantindo que os velhos que têm alguma autonomia se mantêm activos em funções úteis. Uma delas já é aproveitada por muitas famílias: ajudarem a educar os netos.
Não podemos continuar a enfiar os nossos velhos em depósitos, para que morram devagar longe dos nossos olhos. Mas a alternativa não me parece que sejam famílias de aluguer, que representariam uma enorme violência para muitos dos que já tiveram uma vida cheia de afectos. A simples possibilidade de pagar 622 euros mensais para estranhos adoptarem os nossos velhos devia chegar para percebermos que somos, neste momento, uma civilização doente.
(http://arrastao.org/), por Daniel Oliveira.

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