sábado, 31 de outubro de 2009

SARAMAGO E OS PRIVILÉGIOS DA IDADE

           Precavido quanto à bondade de grande parte da publicidade que, em catadupa, nos pretendem vender pelos olhos e pelos ouvidos, em doses cientificamente estudadas e cada vez mais agressivas, tudo quanto é ilusão e engano, hesitei em enfileirar no rol dos que, costumadamente, correm para as livrarias mal surjam as primeiras notícias do lançamento de um novo livro. Foi o caso, porém, que, desta vez, o escritor era José Saramago, o Prémio Nobel da literatura de l998, o único português distinguido, até agora, naquela categoria e um dos autores mais lidos e traduzidos da actualidade. Para além disso, mesmo que conhecida seja a posição do insigne escritor relativamente à Igreja Católica e o seu pensamento ateu e a forma como aborda aqueles temas em obras anteriores as declarações, por ele produzidas, na conferência de imprensa em Penafiel no lançamento da sua última obra, acabaram por amolecer a minha resistência e adquiri o já celebérrimo "Caim".
           Da leitura do livro a ideia, que primeiro me ocorre, é a de que o autor adopta o princípio da interpretação literalista de algumas descrições bíblicas e, tomando como paradigma a narração metafórica de morte de Abel (o Bem) por Caim (o Mal), parte para a exploração de uma dialéctica de confrontação com Deus, culpabilizando-O pelos actos praticados por Adão e Eva e dos seus descendentes, ao longo dos tempos. A prodigiosa imaginação de Saramago faz de Caim uma testemunha que viaja através das histórias bíblicas para, por seu intermédio, questionar e obter do Senhor as respostas para as suas próprias dúvidas e inquietações.
           A crueza das palavras que Saramago entendeu utilizar no seu romance não acrescentam nada de edificante ao seu estatuto de Nobel da literatura, de dotado e considerado escritor mundialmente reconhecido, só podendo ser entendidas como excesso de liberdade de autor, como ele próprio, aliás, já reconheceu. Mesmo o facto de lhe poder ser concedida a benevolência que a sua provecta idade lhe confere,comparável ao tratamento atribuído às crianças de tenra idade e aos idosos, José Saramago não pode comportar-se como alguém que alivia a sua flatulência no meio de uma plateia de crentes sem se preocupar com o incómodo que o odor possa provocar aos narizes dos que o sentirem.
           Ler Saramago é sempre um acto motivador e enriquecedor se bem que, a forma peculiar da sua forma de escrever possa, inicialmente, causar algum embaraço. Dava tudo para saber qual o veredicto do antigo inspector do ensino primário, João Duarte, conhecido pela alcunha de "bota-abaixo", se lhe aparecesse pela frente um aluno a exame da quarta classe com uma redacção elaborada ao estilo criado pelo insigne escritor.
           Ao acabar a leitura do Caim voltei à página onde Saramago deixa dedicatória à sua actual companheira e esposa e aí permaneci, durante alguns momentos:
                                        A PILAR, COMO SE DISSESSE ÁGUA,
constatando que, se bem interpreto o sentimento do autor, o seu coração ainda não terá perdido a batalha que, porventura, a mente persistentemente lhe vem impondo.

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